João Adolfo Guerreiro
Descobrindo a verdade/ sem medo de viver/ A liberdade de escolha/ é a fé que faz crescer.
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Textos

Millor, a entrevista

 

Difícil não se render à sua irreverência. Freud, humor popular, Lula, FHC, Sarney, jornais, jornalistas e biógrafos brasileiros: na entrevista a seguir, o humorista e escritor Millôr Fernandes (1923 - 2012) sacaneia todos eles. No bom sentido, é claro.

 

A entrevista reproduzida abaixo, feita por Daniel Feix, foi publicada na revista APLAUSO em 2004

 

Antes que o título desta entrevista engane, é bom esclarecer: para Millôr, não há nada mais sério do que fazer rir. “Humor não é gracinha. O humor é a quintessência da seriedade”, ele não cansa de afirmar. É um sacaneador, mas um sacaneador profissional. Daqueles que incomodam governos e questionam as verdades mais estabelecidas. Daqueles que dão status e sentido de permanência a uma piada. Não é por acaso, ele explica, que num certo momento do pós-1964 os humoristas foram o grupo que mais incomodou os militares. “O humor tem de ferir. Se determinada piada fere alguém, azar é do ferido. Ele que se defenda”, diz. E invoca Ivan Lessa, “que é um intelectual poderoso, mas que está sempre de sacanagem”. “Lembro de um texto em que o Lessa diz o seguinte sobre Tenda dos Milagres, de Jorge Amado: ‘Li o livro. Há muito, muito tempo’. Baita sacanagem. Mas muito séria.”

 

Prova da seriedade – ou seria da genialidade? – de algumas das sacanagens de Millôr: volta e meia ele recebe livros técnicos, “seriíssimos”, trabalhos de pesquisa acadêmica sisudos até não mais poder, que trazem reproduções de frases suas. A última, que ele cita pouco antes de começar a entrevista, está num livro sobre medicina, chamado Morte e Formação Médica (Ed. Francisco Alves). Não é exatamente engraçada. Mas se encaixa perfeitamente no seu conceito de saca­nagem: é uma pequena subversão, uma brincadeira séria com algum clássico ou com alguém conhecido do público. Ele a escreveu a partir de um trecho de O Doente Imaginário, peça de Molière, em que o personagem médico demonstra espanto quando acontece algo improvável a um paciente seu. Millôr: “A medicina continua falhando no essencial, humanidade, por ausência do que nesta é essencial, humildade, e por excesso do que nela é mais incontrolável, vaidade. Esse material é explosivo para a crítica social e humana e vai ao encontro de uma ânsia de desforra da humanidade, humilhada pela dolorosa certeza de que da medicina ninguém escapa. Porém, tudo melhor examinado, o riso recai amargamente é no próprio paciente. O médico só consegue fazer o paciente – leigo – acreditar no seu jargão porque, na presença da dor e da morte, o paciente deseja acreditar nisso. A mentira é aceita com gratidão pelo doente porque lhe é mais cara a verdade última que ele sente horror em enfrentar. A fragilidade da carne, a inexorabilidade da morte”.

 

Brincar com os clássicos, subverter verdades estabele­cidas, esculhambar políticos e celebridades – com muita seriedade, é claro. É só isso que Millôr quer neste momento. Prestes a completar 80 anos de idade (em 24 de agosto) e com 66 de jornalismo, ele não pretende mais trabalhar na grande imprensa. Está disposto apenas a se dedicar ao seu site (www.millor.com.br, a visita é imperdível), ao teatro, aos livros, às caminhadas na praia, ao lazer com os amigos. “Hoje em dia, não há mais jornais para eu trabalhar no Brasil”, afirma o criador de Vão Gôgo e da revista Pif Paf, co-fundador do Pasquim e um dos responsáveis por transformar a revista Cruzeiro num dos maiores fenômenos editoriais do país. Saiba por que a seguir, nesta conversa gravada em uma de suas duas coberturas em Ipanema, Rio.

 

APLAUSO: Por que o humor tem de ser sério?

Millôr Fernandes: Humor não tem de ser sério. Ele é sério – ou não é nada. Por que eu digo que o humor é a quintessência da seriedade? Porque quando você já ultrapassou a seriedade você a sacaneia com humor. Quando Phroudon disse que “toda propriedade é um roubo”, as pessoas devem ter rido. Na­quela época, princípio do século 19, devia ser algo engraçado. Depois veio o Bernard Shaw e afirmou: “Todo lucro é um rou­bo”. Outra piada. Mas eles estavam dizendo coisas absolutamente sérias. O cara não amealha, junta dinheiro para ter uma propriedade sem tirar a mais valia dos outros, né? Agora, é importante que se diga: quando escrevo algo, nunca imagino o que exatamente pode sair, quanto mais a seriedade que isso pode ter. Não escrevi esse trecho baseado em Molière imaginando que poderia servir de referência num livro técnico de medicina.

 

Como será que o Jorge Amado reagiu a esse texto do Ivan Lessa que você citou? Você já deve ter enfrentado reações fortes das pessoas com algumas de suas ironias, não?

Não se deve ter medo de ferir alguém. O humor tem de ferir, sim. Eu não tenho medo de ser politicamente incorreto. O que eu e meus colegas humoristas já esculhambamos as feministas, por exemplo. Elas sempre reclamavam, mas estavam erradas. Quando nós fazíamos isso, até 20 anos atrás, parecia algo reacionário. Mas na verdade estávamos corrigindo o caminho delas. Instintivamente, ou algo que o valha.

 

Seu humor às vezes é escrachado, mas não é nada pessimista. Você, aliás, costuma dizer que é “indecentemente feliz”. E é um otimista – como disse recentemente?

Na verdade, o otimista é um babaca. Não está com nada. Vai ser otimista com o que a estas alturas do campeonato? Agora, vou te dizer: eu vivo no melhor dos tempos. Não tenho dúvida nenhuma disso. Pensa nas condições de vida que há atualmente. Há 100 anos, não havia luz elétrica. O mundo já foi muito pior pra se viver. Não havia água encanada, nem carros, as ruas eram cheias de lama. E pra ouvir música, como se fazia? E pra se comunicar com as outras pessoas?

 

Você realmente não gosta de humor popular, não é? Como você avalia o humor da televisão aberta no Brasil, que hoje é o nosso humor popular?

As últimas vezes que vi A Grande Família, [da TV Globo], eu achei bem bom, muito engraçado. Uma comédia de costumes bem escrita, bem interpretada etc, como são alguns outros programas. Mas o bestialógico, a grosseria, aí não gosto mesmo. Nunca gostei de chanchada, por exemplo. Sempre achei uma grande bobagem. Há muitos teóricos, pensadores, como o meu amigo Sérgio Augusto, que encontram grandes sacadas, conceitos filosóficos, aquela coisa toda. Mas não tem nada disso, não. Onde já se viu filosofia nas chanchadas? Aqueles programas clássicos da Rádio Nacional, idem: são absolutamente bestialógicos. O Chico Caruso põe no rádio empolga­díssimo e diz: “Olha só que engraçado”. Aí todos riem. Mas eu não entro na onda, não adianta. Sou mais da linha do humor inglês.

 

Você já disse também que não quer fazer humor intelec­tual. Como você define seu humor? Como o Millôr se define?

Preciso me definir mesmo? Bem, sou um cara que vive, que vive mais, que escreve ocasionalmente. Se você perguntar a dez pessoas na rua o que elas acham do meu trabalho, vai ouvir de cinco a mesma resposta: “Gosto muito, mas não entendo a metade”. Mas entender a metade do que eu faço já é melhor que entender um artigo médio entre a maioria dos que são publicados na imprensa hoje. Entender a metade de um Verissimo é a mesma coisa. E o que ele faz é um produto intelectual, sem dúvida.

 

Piada pode ser analisada – como fez Freud, por exemplo?

Freud entende tanto de piada quanto de sonho: nada. Ele analisou três ou quatro, só. Conhece muito menos humor que eu. Ele sabia tantas piadas como nós sabemos hoje? O.k., vamos admitir que ele está analisando alguma muito bem. Só que eu posso contrapor com inúmeros exemplos de outras piadas que não se encaixam na análise que ele faz. Não tem sentido. Bergson, que é melhor que Freud, faz análises mais recatadas. Freud é brincadeira, não dá pra levar a sério.

 

Nem A Interpretação dos Sonhos pode ser levada a sério?

Não. Sou artista gráfico e aprendi a fazer o seguinte: registrar o sonho de manhã bem cedo. Porque senão a gente o esquece. E se eu contar esse meu sonho para o Chico Caruso? Ele fará um desenho completamente diferente. Vai interpretá-lo de outra forma, nada a ver com o que eu vi. E se eu falasse para o Freud? Seria algo muito diferente também. Agora imagina uma burguesota gorda que vivia na Áustria nos anos 20. Imagina o que ela sonha. E imagina o que ela conta do sonho para o Freud. Com base nisso, dá pra esse sujeito tirar conclusões genéricas que façam sentido até hoje? Ah, não. O que eu conheço de psicanalistas idiotas, vou te contar. Como eles gostam de reproduzir jargões absolutamente tolos, é incrível. Não entrego nem meu cachorro para a maioria deles. O Freud e o Jung tinham complexos de toda ordem. Imaginavam demais, sonhavam coisas estranhas. Freud via a cabeça da mãe sair do quarto e vir até ele. Minha mãe morreu quando eu tinha 10 anos, e nunca imaginei nada parecido. Acho que os dois produziram especulações intelectuais curiosas. Usar essas especulações para curar algo? De jeito nenhum.

 

Você não acredita na psicanálise?

Só maluco pra procurar psicanalista. Como é que pode se levar em conta coisas que Freud dizia sobre sexo no século 19? Observa tudo o que mudou de lá pra cá. Falar de sexo com parâmetros do século 19 é absurdo. O filho do Freud – isso é verdade e poucas pessoas sabem – certa vez perguntou para ele: “Papai, mulher tem perna?”. Para você ter uma idéia de como era a repressão naquela época.

 

É verdade que você está escrevendo uma autobiografia?

O que deveria ser uma autobiografia acabou se transformando no meu novo livro, Apresentações (Record). A editora havia pedido, mas eu não quis fazer uma autobiografia. Há coisas que não posso falar. E, além disso, no Brasil não existe a cultura das biografias. Não conheço ninguém que tenha escrito biografia direito por aqui. É tudo coisa de comadre.

 

Dê exemplos.

Todas as escritas no país são elogiosas demais, não revelam os podres do biografado. O Elio Gaspari lançou recentemente uma boa biografia, mas me pergunto o quanto não ocultou sobre a vida do General Golbery. Será que ele realmente sempre se posicionava contra o Geisel quando este dizia “temos de matar, baixar o pau nos comunas”? Se­rá que o Golbery nunca concordou, ou mesmo afirmou isso? Evidentemente que sim. Compare nossas biografias com as anglo-saxãs. É outra coisa. Não há censura alguma, toda a verdade está ali. A última biografia que li foi a do Churchill. É o retrato de um grande homem, mas também de um grande filho da puta. Políticos importantes são sempre filhos da puta, não dá pra esconder isso. Vai dizer que o Napoleão foi bonzinho?

 

As biografias brasileiras são oficialescas, é isso?

Temos um compromisso, digamos assim, familiar. Não queremos ficar de mal com ninguém. E ainda nos falta talento. Não adianta se colocar como inimigo do Antônio Carlos Magalhães sendo um escritor medíocre. Ou vice-versa. Veja Chateau, o Rei do Brasil, do Fernando Morais: há coisas absurdas ali. A fuga do Chateaubriand para o Sul é coisa que nem 007 faria. Um historiador também não pode afirmar, como ele afirma, que o Chateau fazia aquelas peripécias sexuais. Duvido. Antes de decretar que aquilo tudo era verdade, o biógrafo deveria consultar neuro-cirurgiões para saber se é possível, e aí relatar o que esses médicos dizem.

 

Você bota fé no governo Lula?

Tenho a impressão de que este governo não tem muita noção do que faz. O Fome Zero, por exemplo, é uma proposta politicamente terrível. Porque foi feito para dar certo, tinha de dar certo. Mas… Não sei até que ponto a deficiência cultural pesa. A diferença entre o FHC e o Lula é que o FHC acha que sabe tudo, e o Lula acha que não sabe inglês. E eu acho que a ignorância subiu à cabeça do Lula. Mas, bem, se ele realmente fracassar, aí sim estaremos perdidos. Para onde iremos?

 

Você também não perdoou o FHC (e o Sarney) no livro Crítica da Razão Impura ou O Primado da Ignorância (2003)…

É que não dá, né? O Sarney é inacreditavelmente ruim. Tive de desmoralizar letra por letra aquele livro que ele escreveu. Aliás, aquilo só pode ser considerado livro porque, segundo a Unesco, “livro é uma publicação não-periódica de mais de 49 páginas”. Acho que, depois de um esforço sobrenatural, ele conseguiu chegar à 50ª. Aí pôs o ponto final e gritou para Dona Kyola: “Mãe, acabei!”. E o FHC, bem, o FHC é um idiota. Um idiota pomposo, que acha que sabe mais que os outros. Isso realmente é dose.

 

Por que você não trabalha mais em jornal?

Não tenho mais interesse. Já pensei até em deixar de fazer meu site. O que eu quero, hoje, é ficar sacaneando. Gosto quando me dão alguma coisa pra eu sacanear em cima. Por exemplo, a frase do Sartre: “O inferno são os outros”. Gosto de pegar essa frase e fazer algo sobre ela. O inferno são os outros? O céu também. Não é verdade? A Igreja Católica usa muito uma frase, e o comunismo também: “O dinheiro não é tudo”. Eu completo: tudo é a falta de dinheiro.

 

Mas se afastar da grande imprensa é uma opção sua ou tem a ver com a postura, com a linha de atuação dos veículos de comunicação hoje em dia?

A segunda opção. Não há lugar pra mim. Sou o profissio­nal mais demitível da imprensa brasileira. Já trabalhei em O Dia, Jornal do Brasil mais de uma vez, Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, Veja… Fico impressionado com a forma como esses veículos trabalham. Não têm respeito pelos seus colaboradores. Há muita gente incompetente. Por isso, rompi com quase todos eles. Prefiro ficar sacaneando.

 

Suas broncas são pessoais com os jornalistas e diretores dos jornais e revistas?

Não exatamente. Da Veja eu saí porque estava apoiando o Brizola nuns confrontos que ele teve em 1982. Foi um dos raros momentos em que apoiei alguém. Aí a direção da revista me chamou pra conversar. O Roberto Civita disse que a eleição estava se aproximando e eles não faziam campanha. Queria a todo custo que eu continuasse na revista, mas sem escrever mais nada sobre o Brizola. Só que três semanas antes eles haviam dado dez páginas pra o ACM – que eu acho um canalha, ao contrário do que a revista disse na época.

 

Fale mais sobre seu gosto por tecnologia e computadores. Poucos sabem que você é um especialista no assunto.

Eu realmente leio muito sobre tecnologia e estou atento a essas coisas. Tenho inclusive um palpite: em no máximo dez anos vai existir um chip individual com uma força capaz de anular a gravidade. Recentemente, pesquisadores criaram uma matéria que não é sólida, nem líquida, nem gasosa. Daí a esse chip não é um passo tão longo assim. Agora, há um paradoxo nisso tudo: a informática me faz voltar aos livros. O computador provoca em mim uma vontade de ler. Inclusive me motivou a criar a frase que encerra o Apresentações: “Livro não enguiça”.

Daniel Feix
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 11/06/2025
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