João Adolfo Guerreiro
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Lampião: 80 anos da morte

“Tu me ensina a faze renda, que eu te ensino a...” ATIRAR!

Quando, em 1929, Virgulino da Silva chegou à chácara onde a jovem Maria Gomes de Oliveira, a Maria de Déa, recém saída do primeiro casamento, morava, ouviu: “Tu é o amor da minha vida. Como vai ser, vai me levar ou eu vou atrás de ti?” Silva, já um homem bastante experiente e vivido para os seus 30 anos, olhou bem para a “mulata da Terra do Condor” de 18 anos, de pernas grossas, cintura fina e rosto bonito, e levou. Começou assim o mais famoso caso de amor bandido da história brasileira: Lampião e Maria Bonita (eles são os que estão ao centro da foto acima). Entretanto não vamos focar aqui na história de amor, mas sim nos personagens desta.

Lampião, nascido há exatos 120 anos (04.06.1898) em Pernambuco e batizado Virgulino Ferreira da Silva, era conhecido por essa alcunha, que ele mesmo se dera, ao falar que seu fuzil disparava tão rápido que mais parecia um lampião alumiando as noites nordestinas. E pior que não era fanfarronice: Virgulino, mesmo cego de uma vista e usando óculos, era certeiro no tiro, uma espécie de sniper do sertão. Por tal motivo, dentre outros, teve uma longa carreira bandida por vinte anos, tornando-se o Rei do Cangaço. Já a baiana Maria Bonita só ficou conhecida por esse apelido depois de morrer, pois em família e no bando de seu marido era a Maria de Déa (Déa era sua mãe) ou a Maria do Capitão, tão somente. Nasceu em 08 de março de 1911, por coincidência, dia que poucos anos depois seria definido como o Dia Internacional da Mulher.

Cangaço é como se chamava o tipo de “banditismo social” (há controvérsia entre historiadores e sociólogos) praticado no semiárido nordestino naquele período da história brasileira. Lampião entrou na vida do ferro e do fogo desde cedo, envolvido em rixas entre famílias (seu pai foi morto por tal motivo), mas o ponto inicial de sua saga no cangaço foi em 1921, quando adere ao famoso bando de Sebastião Pereira e Silva (20.01.1896 – 21.08.1979), o Sinhô Pereira. Em agosto de 1922, por pressão da família e conselho do Padre Cícero, este se “aposenta” e Virgulino assume a chefia do grupo, dado o talento e liderança já demonstrados em ação.

Aqui fica a deixa para uma história interessante: os cangaceiros eram todos muito católicos, por mais paradoxal que isso seja. Traziam crucifixos e correntes com santos pendurados no pescoço e sempre rezavam ao nascer e ao por do sol. Todos devotos de uma figura já mítica no nordeste: Cícero Romão Batista (24.03.1844 – 20.07.1934), o Padre Cícero ou, como era popularmente conhecido, Padim Ciço. Figura ímpar que possuía tanto liderança espiritual quanto política, no início de 1926 o Padim chamou Lampião a Juazeiro do Norte, a pedido do deputado Floro Bartolomeu Costa (17.08.1876 – 08.03.1926), a fim de solicitar ao cangaceiro constituir um dos Batalhões Patrióticos com o intuito de combater a Coluna Prestes (1925 – 27), que andava por aquelas bandas à época. Foi-lhe oferecido a patente militar de capitão, anistia e modernos fuzis Mauser, em substituição aos rifles Winchester “Papo Amarelo”. Inicialmente Lampião aceitou o acordo, porém logo percebeu que a patente e a anistia eram balela, não possuíam valor legal; então somou o “capitão” ao nome, ficou com as armas e voltou à sua rotina de saques, nunca enfrentando os revoltosos tenentistas.
Nessa mesma ocasião Lampião teve contato com o libanês Benjamim Abrahão Botto (1890 – 07.05.1938), secretário de Padim Ciço (Botto é o que aparece apertando a mão de Lampião na foto). Após a morte do padre, Abrahão resolveu filmar o cangaço a fim de ganhar dinheiro. Como conhecia o Capitão, ganhou autorização para tal, após perambular muito pelo sertão até encontrá-lo, usando seus contatos religiosos. Abrahão não ganhou dinheiro e tampouco viu a importância histórica de seu registro, onde os cangaceiros apareciam rezando, costurando, cozinhando, fazendo as refeições e simulando combates na caatinga. Já era o período de Getúlio Vargas e seu filme, depois da pré-estréia, foi confiscado pelo governo. O libanês foi assassinado em 1938 com mais de 40 facadas, em crime nunca devidamente esclarecido. De seu documentário restam apenas 11 minutos de projeção, que podem ser facilmente encontrados no YouTube. Existem também muitas fotos por ele feitas do bando de Lampião.

Sim, você não leu errado o detalhe acima: os cangaceiros, cabras-macho, costuravam suas próprias roubas e, inclusive, alguns bordavam, embora essas atividades fossem exercidas com mais freqüência pelas mulheres do bando. Virgulino Ferreira entendia muito do serviço, tanto que a mulher de um dos seus subchefes, Corisco (Cristiano Gomes da Silva Cleto, 10.08.1907 – 25.05.1940), a também pernambucana Dadá (Sérgia Ribeiro da Silva, 25.04.1915 – 10.02.1994), estreitou relações com o chefe ao presenteá-lo com um bordado muito belo para seu bornal, com motivos florais geométricos multicoloridos, um primor. Sobre esse tipo de informação você poderá comprar o livro Maria Bonita – sexo, violência e mulheres no cangaço, de Adriana Negreiros, a ser lançado em agosto, ou ler um trecho deste na revista Piauí que está nas bancas. Nele, você verá também que todos os cangaceiros e suas esposas andavam sempre muito bem perfumados, por exemplo.

Mas Virgulino Ferreira da Silva, além de tiros, perfumes e costuras, também era compositor. A canção Mulher rendeira é a ele atribuída. Teria composto em homenagem a sua avó. Em alguns cercos a cidades as quais atacava, como Mossoró (RN), eles e seus cangaceiros entoavam essa canção, quiçá para amedrontar as famílias e moças pelos estupros que viriam a seguir: “Olê mulé rendera, olê mulé rendá, tu me ensina a faze renda, quer eu te ensino a namorá”. Uma versão, com letra um pouco diferente, foi gravada em 1957 por um dos cangaceiros sobreviventes do bando, Volta Seca (Antônio dos Santos, 13.03.1918 – 02.02.1997), e o áudio é igualmente fácil de achar na internet.

Para encurtar essa história, vamos para o seu epílogo. Em 27 de julho de 1938, pouco mais de dois meses após o assassinato de Abrahão, o Capitão Virgulino e seu bando foram acampar num esconderijo por ele considerado muito seguro, uma grota na Fazenda Angicos, em Sergipe. Na manhã seguinte, por volta das cinco horas, ao acordarem para o café e para as rezas, foram surpreendidos pela polícia, que iniciou violenta carga de fuzilaria e metralha. Eram em torno de trinta cangaceiros e cangaceiras no acampamento, sendo que onze, dentre eles Lampião e Maria Bonita, tombaram. Uma das sobreviventes, a sergipana Sila (Ilda Ribeiro de Souza, 1920 - 13.02.2005), companheira do cangaceiro Zé Sereno (José Ribeiro Filho, 22.08.1913 – 16.02.1981), contou que a fumaça desencadeada pelos tiros foi tamanha que eles se esgueiravam pelas pedras da grota, encobertos. O que Sila (que durante a noite comentara com Maria Bonita que vira luzes em volta do acampamento e esta disse que deviam ser apenas vaga-lumes) não sabia é que ela e os outros só escaparam porque um terceiro grupo em que a volante (como eram denominados os grupos policiais que caçavam os cangaceiros) foi dividida não chegou a tempo para fechar totalmente o cerco.

Assim, amanhã [NR - hoje] fará 80 anos que o Rei do Cangaço, aos 40 anos, foi deposto à força de seu trono. Os “macacos” (alcunha pejorativa usada pelos cangaceiros para se referir aos policiais), após o final do tiroteio, teriam se impressionado com a beleza de Maria de Déa (eis uma das versões para o apelido posterior de Maria Bonita), o que não impediu que decepassem sua cabeça a facão, mesmo ela ainda estando viva, embora gravemente ferida, aos 27 anos. Os policias fizeram o mesmo com os outros abatidos, deixando os corpos às moscas no local e colocando suas cabeças em latas com sal. Posteriormente as levaram para uma cidade próxima, Piranhas, dispondo-as na escadaria da prefeitura e as fotografando, uma das imagens mais conhecidas e tétricas desse episódio. Na cidade de Santana do Ipanema, as cabeças também foram fotografadas, mas expostas na calçada da igreja. Os membros da volante também eram muito católicos, pelo visto.

As cabeças de Lmapião e Maria Bonita só foram entregues aos familiares e enterradas em 6 de fevereiro de 1969.

Texto publicado em 27 de julho de 2018 no site do jornal Portal de Notíciashttps://www.portaldenoticias.com.br/ler-coluna/703/ldquo-tu-me-ensina-a-faze-renda-que-eu-te-ensino-a-rdquo-atirar.html
João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 28/07/2018
Alterado em 28/07/2018
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