João Adolfo Guerreiro
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Textos
A ideologia do poeta Cazuza

“Ideologia, eu quero uma pra viver” – bradava no refrão de sua canção “Ideologia” Cazuza, em 1988. Nesse mesmo disco de vinil em formato Long Play (LP) que, aliás, igualmente se chamava “Ideologia”, também havia “Brasil”, em que, lá pelas tantas, ele cantava: “Brasil, mostra tua cara, quero ver quem paga, pra gente ficar assim, Brasil, qual é o teu negócio? O nome do teu sócio? Confia em mim!”. No ano seguinte, lançou o LP Burguesia, onde a canção que dava título ao mesmo, além de dizer que os burgueses são “caboclos querendo ser ingleses”, arrematava feroz: “A burguesia fede, a burguesia quer ficar rica, enquanto houver burguesia, não vai haver poesia”.

São canções do final dos anos 1980 que podem ser revisitadas hoje em dia, perfeitamente. Claro, devemos contextualizar o artista e sua obra com o período histórico, antes. Quando Cazuza, oriundo de uma família de classe média alta, as compôs, sua saúde já estava comprometida pela Aids, que o vitimaria em julho de 1990. Viu a queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, mas não a dissolução da União Soviética, em 1991. O Brasil era governado pelo PMDB e José Sarney era o presidente. Fernando Collor seria eleito em outubro de 1989 e renunciaria ao cargo em dezembro de 1992, a fim de, inutilmente, escapar do processo de impeachment.

Em “Burguesia”, Cazuza alude em dois momentos sua condição social. Primeiro, informa “pobre de mim que venho do seio da burguesia, sou rico, mas não sou mesquinho, eu também cheiro mal”, para depois explicar que “eu sou burguês, mas sou artista, estou do lado do povo”. Cazuza, contudo, não era um pensador ou militante político, era um poeta. E um poeta “Exagerado”, como deixou claro nessa outra famosa composição. Assim, coloca na mesma canção extremos sobre sua visão acerca da burguesia: “Vamos acabar com a burguesia, vamos dinamitar a burguesia, vamos pôr a burguesia na cadeia, numa fazenda de trabalhos forçados, (...) porcos num chiqueiro são mais dignos que um burguês” e “mas também existe o bom burguês, que vive do seu trabalho honestamente, (...) o bom burguês é como o operário, é o médico que cobra menos para quem não tem e se interessa por seu povo”. Na metade da canção, propõe: “As pessoas vão ver que estão sendo roubadas, vai haver uma revolução ao contrário da de 64, o Brasil é medroso, vamos pegar o dinheiro roubado da burguesia, vamos pra rua”!

A mesma visão “estou do lado do povo” expressa em “Burguesia”, aparecia anteriormente em “Brasil”: “Não me ofereceram nem um cigarro, fiquei na porta estacionando os carros, não me elegeram chefe de nada, o meu cartão de crédito é uma navalha”. Já em “Ideologia”, o cantor está com uma angústia mais difusa, não tão objetiva e sem endereço social certo, a não ser pelo fato de que “meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder”. Ele inicia cantando “meu partido é um coração partido, minhas ilusões foram todas perdias, os meus sonhos foram todos vendidos tão barato que eu nem acredito”, e acrescenta: “O meu prazer agora é risco de vida, meu ‘sex and drugs’ não tem nenhum rock’n roll, eu vou pagar a conta do analista para nunca mais saber quem eu sou”.

Em 1989, Cazuza liberou “Ideologia” para ser utilizada por Collor em sua propaganda eleitoral e também declarou que “sou socialista e acho que o único caminho para um país do terceiro mundo chegar ao primeiro mundo é através do socialismo”. Cazuza era um grande poeta, um dos maiores de sua geração, ao lado de Renato Russo. Revisitar sua obra requer entender sua biografia e o momento pessoal e político em que escreveu suas canções. Os poetas não tem a obrigação da coerência, pois, como disse Fernando Pessoa, “o poeta é um fingidor”.

Texto publicado na seção de Opinião do Jornal Portal de Notícias: http://www.portaldenoticias.com.br
João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 13/05/2015
Alterado em 15/05/2015
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