João Adolfo Guerreiro
Descobrindo a verdade/ sem medo de viver/ A liberdade de escolha/ é a fé que faz crescer.
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Velório

O tio Eraldo, no último dia das mães, caiu em casa e quebrou o fêmur, bem no colo. Teve um AVC no WC, não sabe-se se isquêmico ou hemorrágico. E digo isso porque, como ficou no SUS, até sair o resultado da tomografia, ele morreu.

Lá estava o tio Eraldo, de fraldão, imóvel sobre o leito hospitalar. Logo ele, que sempre foi pegador. O legítimo crepúsculo do macho. Triste, de verdade.

Ajudei o meu pai a cuidar dele em minhas folgas, junto com minha mãe, minha tia Dione e minha prima Paula. A gente se revezava durante o dia, uma ex-enfermeira cuidava dele à noite, meu pai pagava.

Dia 24, quinta pela manhã, minha mãe liga: - João, teu pai tá precisando de ti lá no hospital, o teu tio está morrendo".

Meu pai estava nervoso. Tem 76 anos. Meu tio Eraldo tinha 78. Ah, eram irmãos.

Chego lá e o tio já tinha dado boa noite pro gaiteiro, mesmo sendo 12h e 20m da tarde. Um padecimento. Descansou, como dizem, quando querem na verdade dizer também "descansamos". Todo mundo deveria reconhecer que é um pouco FDP também, né.

Tio Eraldo era um cara legal, simpático, tri do bem. Meio "banzo", como dizia meu pai. "Teve minigite na infância", explicava.

Durante sua agonia me estressei duas vezes.
Primeiro, com uma enfermeira que queria que eu desse água para o tio. Ora bolas, o tio lá, desligado, e a maluca queria que eu desse água pra ele, arriscando a afogá-lo. Surreal. 
Depois com a simpática companheira do tio, que vinha caindo de gripe ficar com ele, justo no meu turno, às tardes. Tive que ter todo o tato, pois ela tinha todo o direito de estar lá, estava há mais de dez anos com o tio e estava visivelmente abalada com a situação. Falei com ela com todo o jeito. Não adiantou. Daí pedi para a enfermeira falar com ela. Adiantou. Lá se foi ela cabisbaixa, os meigos olhos azuis lacrimejando.

Mas eu estava dizendo que o tio passou a régua e fechou a conta.
Minha mãe e sua irmã Dione chegaram junto comigo. Meu pai nervoso e brigando com minha mãe, que dizia para ele não ficar nervoso, enquanto os outros dois pacientes que estavam acamados no quarto assitiam a tudo de olhos arregalados, com certeza pensando no que vocês podem imaginar.
Os três falavam ao mesmo tempo e queriam resolver as mesmas coisas. Tomei pé da situação, falei para deixarem tudo comigo, pois acabara de passar por situação semelhante no inicio do mês, com o falecimento de um amigo. Logo, tinha experiência recente nos trâmites burocráticos. Fiquei responsável.

Depois do médico olhar o tio, encaminhar-se tudo, levamos ele para  a funerária. Meu pai pediu pra mim providenciar o enterro para o mesmo dia, que ele não queria esticar o pesar.

Meu pai e meu tio são naturais de Mostardas, logo avisamos os parentes para que viessem. Veio o pessoal de Porto Alegre e de Santo Antônio da Patrulha. Eram 10 irmãos, restam agora seis. Quatro não poderiam vir, por um motivo ou por outro.

Por volta das 14 horas lá estava o tio, de barba feita, bem bonitinho até (o tio era pegador né), estendido no caixão da Capela Mortuária Municipal, próximo ao cemitério Júlio Rosa.

O pessoal foi chegando. cerca de 30 pessoas estavam no velório.
Posso dizer que bastante consternadas estavam 4 pessoas: o pai, a tia Lizete (irmã deles), a Sônia (sobrinha) e a Doninha, companheira do tio, ainda caindo de gripe, tadinha. O resto, eu incluso, variava entre os tristes pelo tio com o estar ali para dar uma força.

Eu me emocionava vendo eles chorar. Depois de passar por outro epísódio funerário no início do mês, percebi que eu sou aquele que se emociona quando começa o calvário no hospital, depois racionaliza e só depois de alguns dias do enterro é que me chateio novamente.

A Capela tem duas salas, na outra estavam velando um homem de 39 anos que falecera vitima de doença crônica. Conversei com um colega de serviço que estava lá e ele me relatou. Ele seria enterrado ás 17h, o tio às 17:30, para dar tempo do representante do padre (esqueci o nome técnico dele) encomendar os dois.

Fui lá ver com o administrador do cemitério os trâmites para comprar uma gaveta para o tio. Eu e o rapaz da funerária, muito competente e solícito. O administrador era um conhecido, já havia sido vereador na cidade.
Nós conversando amenidades e causos sobre política municipal e o tio lá. Fizemos a papelada, custava mil e poucos reais uma gaveta perpétua, que fica para a família.
- Dá pra parcelar até em trinta vezes lá na prefeitura -informou.
- Tá, só espero não continuar sendo teu freguês assíduo, já é a segunda vez em maio que eu venho aqui.
Eh eh eh eh, muito engraçdo né. FDP's nós dois.
Buenas, tudo pronto, tudo na confiança para ser pago depois, uma das vantagens de se morar em cidade de médio porte.

O pessoal lá, tomando café, chá, comendo bolacha doce e salgada, falando do passado do tio, das histórias confessáveis e das secretas, contando piadas, chorando. Essas coisas. Uns até fumando. Eu olhava para eles e lembrava do velório do meu amigo, fumante inveterado, que faleceu de doença crônica no pulmão. Pois até no velório dele os caras estavam fumando! PQP!!!!!!

Outra coisa: já repararam que as pessoas tem a mania de usar frases feitas que, em certos momentos, ficam extremamente inadequadas? Tipo: - "Oi João, e daí, tudo bem?" Eu não deixava passar: - "Tudo bem , menos pro tio, né". Sorrisos amarelos.

Chega o Paulo, o representante do padre. Justifica a ausência do pároco. Distribuiu um xerox com letras de cânticos para os presentes. Simpático ele. Rezou, falou algumas coisas, leu outras, cantou com o pessoal.
Falou sobre o tio Eraldo, que "tinha 70 e poucos anos"...
"78" - corrigiu a Tia Lizete. Não era bom com números o Paulo, pois depois da terceira vez que ele errou a idade do tio, a tia Lizete desistiu de corrigí-lo. Até ao mencionar o defunto velado na sala ao lado ele chutou pra fora: "Vejam, ele tinha só 44 anos..."
Deu um pedaço de texto para a mãe do meu cunhado, que canta na igreja, ler. O óculos dela estava ruim, e a coisa saiu aos tropeços. O Paulo falou mais um pouco, cantou mais algumas coisas. Deu para minha irmã ler outro  texto. Depois encerrou com todos de mãos dadas rezando um Pai Nosso.

Levamos o tio para o cemitério, em cortejo. Meu pai não quis ir, ficou na capela esperando. Enquanto os pedreiros ajeitavamo caixão na gaveta e fechavam-na, eu reparava nas pessoas. O pessoal olhava as lápides das outras gavetas, apontavam. Um cachorro ali estava cheirando uma cadela. "Olha o respeito baixinho" - ralhei. Tudo bem, ele é pegador, que nem o tio era, mas tudo tem hora. Me achei novamente um FDP por pensar isso justo naquele momento. Pombas, mas era verdade, fazia parte da história do tio, era um traço dele.

Tudo pronto, volta o cortejo. Os de fora despedem-se, os de Charqueadas vão para casa. O entardecer avança.
Tchau tio Eraldo, desculpa não ter ido no teu aniversário em janeiro. Sabe como é né tio, todo mundo é um pouco FDP né, até tu devia ser um pouco, com certeza, assim com todos nós ainda somos. Eu também vou passar por isso um dia, pois os filhos da minha irmã são, também, uns FDP, que nem no teu enterro vieram e pode ser que não venham no meu também. Só espero que demore bastante esse dia, tá bom por aqui ainda.






João Adolfo Guerreiro
Enviado por João Adolfo Guerreiro em 26/05/2012
Alterado em 25/07/2012
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